Como tem acontecido nos últimos anos, meu primeiro dia na Mostra Internacional de Cinema começou um pouco mais tarde, depois de postar sobre as Dicas para a 33ª Mostra: 1º dia e retirar os ingressos para a próxima terça-feira. Não havia filas na Central da Mostra, e o clima em frente ao Cine Bombril era tranquilo. Tranquilo também estava o Unibanco Arteplex do Frei Caneca, tanto que fiquei até impressionada com o quão rápido retirei os ingressos para uma sessão às 18h.
Provavelmente essa falta de espírito de Mostra foi um resultado de: ser o primeiro dia, estar no meio da tarde de um dia de semana, e os catálogos ainda não estarem disponíveis. Não havia pressa para nada. Cheguei em cima da hora para a minha primeira sessão e havia lugar de sobra na sala.
Comecei com um filme forte, O Apedrejamento de Soraya M., filme baseado no livro homônimo do autor franco-iraniano Freidoune Sahebjam. O filme é focado no relato dos acontecimentos que a levaram a morte por apedrejamento resultante de sua condenação de adultério, e suas circunstâncias. Passado em um Irã pouco depois do pós queda do Xá, o filme incomoda pelo relato da realidade, onde os chamados costumes são nada mais nada menos do que violações de direitos humanos, onde a palavra das mulheres de nada vale. Incomoda também pelas cenas de violência e crueldade, fazendo o espectador assistir a tudo lentamente, colocando-o impotente.
O filme tem um objetivo e o cumpre: sensibilizar o espectador das atrocidades que foram e continuam sendo cometidas em nome da religião, cultura e corrupção. É feito para causar desconforto e empatia, e funciona principalmente pelos planos fechados e as atuações sólidas das atrizes. Há momentos de pura beleza, de closes a paisagens, mas são poucos e estão lá apenas para quebrar um pouco da tensão. É um filme sobre mulheres, com mulheres e sobre os abusos e falta de direitos às quais ainda estão sujeitas. Não vai agradar a todos, mas é um filme sólido para ser visto.
Depois do soco no estômago nada como a leveza, que vem como um sopro de primavera no filme de Hirokazu Kore-Eda, Seguindo em Frente. Com uma trama simples à primeira vista, o filme traça o panorama de uma reunião familiar para lembrar a morte do irmão mais velho, falecido há anos. É um filme sobre tradições, lembranças, pais, filhos, conflito de gerações, e sobre aprender a aceitar as diferenças. O maravilhoso filme flui na tela, alternando humor e reflexão.
Kore-Eda é certamente um discípulo de Yasujirō Ozu. Tudo remete a Ozu: o tema, o ritmo, a construção dos diálogos, as reuniões relacionadas a comida – uma questão cultural aqui também -, e os planos. Você vê o famoso plano tatame, tão utilizado pelo mestre Ozu, presente com grande força no filme de Kore-Eda. Homenagem, cópia ou apenas estilo? Não sei, mas esse Ozu atualizado funciona muito bem, criando um filme delicado e com belos enquadramentos. Isso sem falar da luz, que tem um papel fundamental no filme, contracenando com os atores, dando destaque na medida certa e quase transpassando a tela. Imperdível.
Para o meu terceiro filme do dia eu fui preparada esperando um filme perturbador. Não há como esperar menos de Michael Haneke. Em A Fita Branca o diretor mostra mais uma vez que consegue com maestria causar desconforto no público, através da exposição dos limites da crueldade humana. Mas nesse filme ele o demonstra de maneira mais sutil, destilando-a aos poucos. Durante algum tempo o espectador já acostumado com seus filmes vai se perguntar se o diretor mudou de estilo, entretanto, com o decorrer restante do filme verá que não.
Esse ganhador da Palma de Ouro contra a história de uma série de estranhos acidentes acontecidos em uma pequena vila, às vésperas 1ª Guerra Mundial, através da narração de um jovem professor. O centro da história é um grupo de crianças e adolescentes, criadas de modo severo, sem demonstrações de afeto ou apego. E apesar das crianças serem o foco, não há lugar para inocência no filme, quase todos são culpados, seja de modo velado, ou explícito. Aos que não compartilham dessa teia de inveja, privações, injustiças, violência, amarguras e claro, crueldade, resta apenas fugir.
A violência aparece mais uma vez de modo explícito, juntamente com a opressão psicológica que sofrem seus personagens. É um filme duro, seco, reforçado pela majestosa fotografia em preto e branco de Christian Berger. E é essa fotografia também que ressalta de maneira precisa o tom de naturalismo e reforça o clima opressor. O resultado é um filme soberbo, talvez o melhor Haneke que eu já vi. Outro filme imperdível.
Terminei a noite com um coreano inusitado: Sede de Sangue. Acostumada com o lados cruel/violento e o poético do cinema coreano, o filme de Chan-wook Park veio como uma surpresa. O filme de terror dramático, vem recheado de diálogos e situações de humor. No filme Sang-Hyun é um padre que em prol de um bem maior se oferece como voluntário para testes de uma vacina. O resultado soa como a sinopse de um filme de terror B: ele vira um vampiro. Vira um vampiro não só sedento de sangue, como também de prazeres carnais. O padre começa então a se debater entre manter os seus valores e saciar os seus instintos, procurando maneiras de manter um e suprir o outro.
O filme que poderia cair em um resultado trash, caminha muito bem, alternando momentos de tensão, violência e humor. O espectador acaba encantado em quão estranhamente interessante o filme se torna, fugindo do padrão dos filmes de vampiro e passando bem longe das atuais versões teen hollywoodianas. Não espere a atmosfera sombria do ótimo Deixa Ela Entrar, esse é um filme de situações. Bom filme não só para fãs do gênero.
Dicas para o segundo dia da Mostra
O segundo dia da Mostra vem repleto de coisas boas, especialmente no fim da noite. Aliás, se puder aproveitar o festival apenas à noite, esse é o seu ano de sorte. Confira abaixo os destaques para o dia:
35 Doses de Rum (35 Shots of Rum), de Claire Denis
500 Dias Com Ela (500 Days of Summer), de Marc Webb
A Vida Íntima de Pippa Lee (The Private Lives Of Pippa Lee), de Rebecca Miller
Abraços Partidos (Los Abrazos Rotos), de Pedro Almodóvar
Aconteceu em Woodstock (Taking Woodstock), de Ang Lee
Alexandre, O Último (Alexander The Last), de Joe Swanberg
À Procura de Elly (Darbareye Elly), de Asghar Farhadi
À Procura de Eric (Looking For Eric), de Ken Loach
Czar (Tsar), de Pavel Lounguine
Distante Nós Vamos (Away We Go), de Sam Mendes
Ervas Daninhas (Les Herbes Folles), de Alain Resnais
Eu, Ela e Minha Alma (Cold Souls), de Sophie Barthes
Julie & Julia (Julie & Julia), de Nora Ephron
London River (London River), de Rachid Bouchareb
Maradona (Maradona By Kusturica), de Emir Kusturica
Mother (Madeo), de Bong Joon-Ho
Natimorto (Natimorto), de Paulo Machline
O Amor Segundo B. Schianberg (O Amor Segundo B. Schianberg), de Beto Brant
O Apedrejamento de Soraya M. (The Stoning of Soraya M.), de Cyrus Nowrasteh
O Fantástico Sr. Raposo (Fantastic Mr. Fox), de Wes Anderson
O Inferno de Clouzot (L’Enfer D’Henri-Georges Clouzot), de Serge Bromberg, Ruxandra Medrea
O Mundo Imaginário de Dr. Parnassus (The Imaginarium Of Doctor Parnassus), de Terry Gilliam
Polícia, Adjetivo (Politist, Adjevtif), de Corneliu Porumboiu
Seguindo em Frente (Aruitemo Aruitemo), de Hirokazu Kore-Eda
Todos os Outros (Alle Anderen), de Maren Ade
Tokyo! (Tokyo!), de Michel Gondry, Leos Carax, Bong Joon-Ho
Vício Frenético (Bad Lieutenant: Port of Call New Orleans), de Werner Herzog









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